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A CULPA É ESSENCIAL PARA A HUMANIZAÇÃO

Por Luiz Felipe Pondé (Folha de São Paulo)
A culpa me encanta. Os olhos vidrados de dor, a alma torturada pela terrível verdade sobre si mesma.
A literatura está cheia de exemplos nos quais o herói ou a heroína chora de desespero pela consciência de sua responsabilidade no mal do mundo. Entre os vários erros cometidos pela cultura moderna, um deles é tentar negar que a culpa seja um instrumento essencial de humanização. Não existe experiência moral sem culpa. Nelson Rodrigues dizia: "Tire a imortalidade do homem e ele cai de quatro". Eu diria, seguindo sua maravilhosa intuição: tire a culpa e o homem cai de quatro.
Hoje eu gostaria de oferecer ao leitor um comentário sobre uma peça literária clássica na qual a culpa aparece em toda sua beleza. Ao contrário do que falam os especialistas em desumanizar o homem (afirmando que o estão libertando), a experiência da culpa é que tira o homem da banalidade do mal e o devolve à ação transformadora de si mesmo e do mundo à sua volta.
Dostoiévski é um clássico. Não vou entrar no debate de se podemos ou não falar de clássicos, no sentido de um conjunto de autores mais importantes para formar um ser humano. Dostoiévski e Shakespeare são melhores do que quase tudo o que a humanidade produziu em literatura. Quem nega isso, o faz por ignorância. Diante da mera ignorância, afirma-se uma teoria relativista qualquer para soar chique e esconder sua banalidade.
Enfim, lemos um clássico para saber quem somos. Enquanto você lê o livro, o livro lê você. É com esse espírito que proponho a leitura do conto "Sonho de um Homem Ridículo", de Dostoiévski, uma pérola da literatura moral. Voltando ao Nelson Rodrigues, eu diria que esse conto é o tipo de obra que você deve ler de joelhos.
Nelson disse isso especificamente sobre sua peça "Senhora dos Afogados" -em cartaz atualmente em São Paulo: é uma peça a que devemos assistir de joelhos.
Estar de joelhos é a posição correta se quisermos pensar o humano na sua condição mais profunda: seu medo, sua insegurança, sua capacidade de amar ainda que seja um ser infinitamente efêmero diante da ordem indiferente do mundo, enfim, sua natureza de respirar o mistério.
Muitas vezes penso que chorar nos torna uma pessoa menos ridícula. As lágrimas colocam as coisas nos seus devidos lugares. Infelizmente, sistemas objetivos para produção de humildade (que muitas igrejas tentaram) apenas destroem a pessoa por meio da demanda desumana de obediência infinita. Independentemente disso, como diria o escritor francês Bernanos (século 20), "a humildade é sempre invencível".
O conto mostra um homem à beira do suicídio, como tantas outras figuras na literatura de Dostoiévski, que busca no autoaniquilamento a afirmação de sua liberdade para com um mundo horroroso. No caminho de casa, vê uma bela estrela e decide que é aquela noite a grande noite de seu suicídio. Uma menina pequena, em desespero, pede que a ajude com sua mãe doente, mas ele a empurra para o lado e segue para o seu glorioso suicídio. Chegando à casa, quando finalmente vai se matar, ele adormece e sonha. Em seu sonho, é levado a um paraíso onde as pessoas vivem sem sofrimento, sem mentira, sem agonia. De tamanha perfeição, elas nem falam, vivendo num eterno estado de torpor feliz.
O que de início será um encantamento com toda aquela beleza sem desespero logo se transformará num desespero pelo vazio que sente em si mesmo diante de tanta plenitude. Nosso homem ridículo descobre que não há amor onde não há sofrimento. Chora pela agonia do mundo (nosso mundo) e percebe que sua vida só tem sentido na medida em que é parte dessa agonia. Quando finalmente consegue trazer aqueles "perfeitos" para uma relação consigo, invejas e ódios se instalam entre os "perfeitos do segundo paraíso" por culpa de nosso herói ridículo e suicida, que passa a ser disputado como troféu. Agora, finalmente, ele os amava.
Acorda. Olha em volta. O desejo de se matar desaparecera. Vasculha o fundo da sua alma e já não é mais a mesma pessoa. O que havia mudado? O que havia mudado era que agora tinha consciência de que fora ele que destruíra aquele paraíso. Ele era a serpente. Nunca reconhecera sua face na narrativa bíblica de sua conversa com Eva. Essa descoberta o lança de volta ao desejo pelo mundo, em vez de paralisá-lo.
Levanta-se e, olhando nos seus olhos, leitor, ele afirma: vou continuar! Abre a porta e sai de casa em busca da menina.

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